Introdução
No âmbito da cirurgia do Trauma, a abordagem aos pacientes traumatizados há muito tempo segue a sequência ABC: Vias Aéreas, Respiração e Circulação. Há mais de uma década, na literatura não cirúrgica, evidências mostraram um benefício de se priorizar a circulação (massagem cardíaca externa) sobre vias aéreas e ventilação.
Outro dado interessante é observar que, mesmo com a difusão da sequência ABCDE para o atendimento, não há evidência robusta atestando a sua eficácia, ainda mais no atendimento ao trauma. Por outro lado, evidências recentes sugerem que priorizar a circulação sobre as vias aéreas pode oferecer benefícios significativos, especialmente em casos de trauma hemorrágico grave.
Será que está na hora de repensarmos a famosa sequência ABC e mudar para CAB no atendimento do traumatizado grave? Leia até o final e tire suas próprias conclusões. Você pode se supreender com elas...
A intubação do paciente instável não te dá controle sobre a situação. Ao contrário, pode levar ao colapso hemodinâmico.
Como é feito hoje em dia
Tradicionalmente, a sequência ABC dita que a avaliação e o manejo das vias aéreas tenham prioridade nas etapas iniciais da estabilização do paciente. A justificativa por trás desse enfoque reside na ameaça imediata à vida representada pela obstrução das vias aéreas, que pode levar à hipóxia e à parada respiratória. No trauma, esse conceito tem sido amplamente difundido no Advanced Trauma Life Support, um dos cursos mais realizados no mundo inteiro. Há diversas recomendações sobre a abordagem das vias aéreas, inclusive com indicações sobre a obtenção de uma via aérea definitiva com uso de drogas sedativas e sobre a ventilação mecânica com pressão positiva.
Racional fisiológico de priorizar a circulação
Em resposta à perda sanguínea grave, o corpo inicia mecanismos fisiológicos destinados a preservar a perfusão tecidual. A vasoconstrição periférica e os aumentos compensatórios na frequência cardíaca servem para manter o fluxo sanguíneo adequado para os órgãos vitais. Diante de um volume intravascular reduzido, essas estratégias fisiológicas priorizam a manutenção da perfusão e do débito cardíaco, pelo menos para alguns tecidos.
A abordagem tradicional de priorizar o manejo das vias aéreas pode inadvertidamente exacerbar a instabilidade hemodinâmica em pacientes com hemorragia grave, especialmente no que diz respeito à realização da intubação orotraqueal.
Não se trata de contraindicar as intubações orotraqueais, mas sim contemporizá-las de modo a realizar esse procedimento no melhor momento possível
Esse procedimento, comumente realizado usando indução com sequencial rápida, pode interromper a resposta fisiológica do corpo à hemorragia. Sedativos e relaxantes musculares utilizados durante a intubação podem comprometer a vasoconstrição, e até induzir vasodilatação, exacerbando a hipotensão e prejudicando a perfusão tecidual. Ainda, sabe-se que a ventilação com presão positiva reduz o retorno venoso. Em conjunto, considerando um paciente em choque hipovolêmico, essas alterações fisiológicas podem resultar em hipotensão peri-intubação e, inclusive, parada cardiorrespiratória.
A hemorragia é uma das principais causas de morte evitável em pacientes traumatizados, respondendo por uma parcela substancial das fatalidades relacionadas ao trauma. Estudos recentes têm destacado os potenciais benefícios de priorizar a circulação sobre as vias aéreas no cuidado ao trauma. Ao focar no controle precoce das fontes de sangramento e na reposição volêmica, os médicos podem prevenir ou mitigar o desenvolvimento de hipotensão, preservando assim a perfusão tecidual e reduzindo o risco de desfechos adversos, como a parada cardiorrespiratória. Não se trata de contraindicar as intubações orotraqueais, mas sim contemporizá-las de modo a realizar esse procedimento no melhor momento possível.
Confira nossa entrevista com a Dra Paula Ferrada no Congresso CBC / SBAIT / SPT realizado em 2023 em Florianópolis (começa em 28:30):
Como implementar a mudança?
Desafios permanecem na implementação dessa mudança de paradigma nos protocolos de cuidados de emergência. Normas culturais e práticas enraizadas frequentemente favorecem a abordagem ABC tradicional, e a atualização de protocolos estabelecidos requer não apenas evidências científicas, mas também educação e treinamento generalizados. No entanto, à medida que as evidências que apoiam a priorização da circulação continuam a crescer, é essencial para os profissionais de saúde permanecerem abertos a reavaliar e adaptar sua abordagem ao cuidado do trauma.
Em conclusão, priorizar a circulação sobre as vias aéreas em pacientes traumatizados representa uma mudança significativa nos paradigmas de cuidados de emergência. Ao reconhecer a importância do controle precoce da hemorragia e da reposição volêmica, os médicos podem potencialmente melhorar os desfechos para os pacientes traumatizados, especialmente aqueles com lesões hemorrágicas graves. Devemos continuar a realizar intubações orotraqueais precocemente naqueles pacientes com iminência de ou obstrução instalada das vias aéreas. Porém, em alguns casos pode ser possível manter uma ventilação adequada temporariamente enquanto há o restabelecimento do volume intravascular, de acordo especialmente às estratégias de redução a quantidade de cristalóides, hemotrnasfusão mais precoce e uso de drogas vasoativas. À medida que o campo da cirurgia do trauma continua a evoluir, abraçar práticas baseadas em evidências é essencial para fornecer cuidados ótimos aos pacientes traumatizados.
excelente o artigo