Por Diego Adão e Joel Gracioso
Introdução
A educação médica, outrora um exemplo de formação integral, encontra-se hoje fragmentada e dominada por modelos tecnicistas e pragmáticos. A Medicina, que já foi considerada uma síntese entre ciência e humanismo, agora muitas vezes negligencia aspectos fundamentais da alma humana e da formação ética.
O aumento exponencial no número de escolas médicas no Brasil, aliado à adoção de modelos “pedagógicos” importados das ciências sociais, permeados por ideologias políticas, contribui para uma crise que exige reflexão e ação.
Este texto propõe uma reflexão sobre o resgate do ideal clássico de formação médica, que valoriza não apenas a técnica, mas também a sabedoria, a virtude e o imaginário, inspirando-se nos princípios da Paideia grega.
O crescimento desordenado e a andragogia mal adaptada na Educação Médica
Atualmente, o Brasil possui mais de 370 escolas médicas para seus 200 mil habitantes, perdendo apenas para a Índia em números absolutos (que tem aproximadamente 400 escolas, mas mais de 1 bilhão de habitantes), escolas essas muitas das quais apresentam currículos inadequados e estruturas deficitárias [1].
Assim, a formação médica contemporânea enfrenta um duplo desafio: o excesso de instituições sem qualidade e a insistência de um modelo andragógico de ensino importado das ciências ditas sociais, que prioriza o suposto “pensamento crítico” (leia-se político-ideológico) e a (in)eficiência técnica em detrimento da formação integral.
Esse modelo falho transforma o ensino médico em um processo mecanizado e superficial, alienante ao fim e ao cabo, afastando-se da ideia de uma educação que busca moldar o caráter, a inteligência e a sensibilidade do estudante. Em vez de formar médicos que compreendam a totalidade do ser humano, produz profissionais tecnicamente até que competentes, mas culturalmente empobrecidos.
A Educação Clássica: uma formação integral
A educação clássica, inspirada na Paideia grega, na Humanitas romana e na tradição cristã medieval, visava alinhar o homem com a verdade, o bem e o belo. Sua preocupação central era ajudar os alunos a conformarem suas almas (psyché) com a realidade, elevando-os à transcendência. Isso era alcançado por meio das artes liberais, que incluíam a gramática, a lógica e a retórica, compondo o Trivium [2]; e a música, a geometria, a aritmética e a astronomia, compondo o Quadrivium [3].
Essa formação não se limitava ao aprendizado técnico ou ao domínio das ciências. O foco era a busca pela sabedoria e pela virtude, como destacou C. S. Lewis (1898-1963), escritor anglicano irlandês, ao afirmar que a educação clássica perguntava: “Como posso conformar minha alma ao mundo que me rodeia de modo a ser elevado à vida divina?” Era uma educação que ensinava a pensar verdadeiramente e agir corretamente, integrando ética e técnica.
O Verdadeiro Problema da EDUCAÇÃO | FILOSOFIA & CULTURA
com o prof. Joel Gracioso
Além disso, a todo estudante era também fundamental uma postura de humildade frente ao conhecimento da Verdade. Hugo de São Vitor (1096-1141), em seu Opúsculo sobre o modo de aprender e meditar, traz que:
"A humildade é necessária ao que deseja aprender. A humildade é o princípio do aprendizado, e sobre ela, muita coisa tendo sido escrita, as três seguintes, de modo principal, dizem respeito ao estudante.
A primeira é que não tenha como vil nenhuma ciência e nenhuma escritura.
A segunda é que não se envergonhe de aprender de ninguém.
A terceira é que, quando tiver alcançado a ciência, não despreze aos demais." [4]
A soberba e a vaidade, tão comuns na forma de likes nos dias de hoje, sempre foram consideradas um grande entrave ao desenvolvimento intelectual.
A perda do imaginário e da memória cultural
O aluno de Medicina contemporâneo, típico representante da Gen Z e filho de uma sociedade educada pelas mídias sociais, em sua formação predominantemente tecnicista, carece de uma base literária e imaginativa.
Não se veem mais acadêmicos que tenham lido Dostoiévski, Cervantes ou Tolkien, autores que poderiam expandir sua compreensão da complexidade humana e trazer mais empatia aos pacientes. Não há mais estudantes que tenham memorizado algum parágrafo de uma redondilha de Camões ou, para sermos ainda mais patriotas, algum terceto do Bruno Tolentino ou Adélia Prado (provavelmente, ouviram nem falar de Tolentino e Adélia), estratégia essencial para se moldar a sensibilidade e o intelecto.
Essa ausência de uma formação cultural mais ampla reflete uma crise profunda na educação médica, que se limita a transmitir técnicas e protocolos, em um modelo positivista de ciência. O médico atual é treinado para resolver problemas, mas frequentemente não é preparado para lidar com as questões existenciais, emocionais e éticas que acompanham a prática médica. Até se tenta ensinar, mas percebemos que fracassamos quando “comunicar más notícia” precisou ser transformado em um protocolo de 6 letras (SPIKES).
Como aprender a reconhecer a dor do outro ser humano, quando se ainda é jovem e viveu poucas experiências, sem o auxílio da literatura? Não tem como.
Em vez de formar médicos que compreendam a totalidade do ser humano, produz profissionais tecnicamente até que competentes, mas culturalmente empobrecidos.
O Relatório Flexner e a ruptura com o Humanismo
A publicação do Relatório Flexner, em 1910, marcou uma revolução no ensino médico, estabelecendo padrões científicos rigorosos e promovendo a profissionalização da Medicina [5]. Embora tenha sido um marco importante, também contribuiu para a marginalização gradual da formação humanista, substituindo a busca pela sabedoria pela ênfase no tecnicismo e na especialização.
Esse modelo foi profundamente influenciado pelo positivismo do século XIX, que reduziu a inteligência a uma ferramenta para resolver problemas práticos e a ciência a um método para produzir resultados. A dimensão especulativa, que busca os significados e os fins da existência, foi progressivamente abandonada. A Universidade, aos modelos medievais, que de fato era universal, dá lugar a escolas fechadas que, embora, na era moderna, assemelham-se a verdadeiros feudos. Sai de cena Santo Tomás de Aquino, entra Auguste Comte. Seria apenas uma questão de tempo...
Resgatando a Paideia Médica
É possível, e necessário, resgatar os valores da Paideia médica, equilibrando a excelência técnica com a formação humanista. Para isso, algumas ações são essenciais e podem ajudar:
Reintroduzir Humanidades no currículo médico: disciplinas como literatura, filosofia, letras clássicas e ética devem ser integradas à formação médica, ajudando os alunos a desenvolverem um senso mais profundo de empatia e reflexão.
Revalorizar o papel do Professor-Mestre: inspirado nos mestres clássicos, o professor deve ser um guia intelectual e moral, não apenas um transmissor de informações. Não basta discutir role model ou “currículo oculto” sem a personificação dessa pessoa na figura de um Mestre presente.
Estimular o imaginário e a memória: incentivar a leitura de clássicos como Dom Quixote, Os Irmãos Karamazov e O Senhor dos Anéis, bem como a recitação e memorização de poemas, como A Máquina do Mundo, pode enriquecer o pensamento crítico e a sensibilidade dos futuros médicos.
Revisar o modelo de ensino: substituir a abordagem pragmática e fragmentada dos últimos 100 anos, enxertada na Medicina a partir do modelo “crítico e significativo” fracassado das ciências sociais, por um método que integre rigor científico, reflexão ética e base cultural, responsável pela formação de grandes médicos ao longo de toda a história, como William Osler e William Stewart Halsted.
Estimular a prática de exercícios físicos e a meditação: o desenvolvimento do corpo e o controle da mente, mais do que uma questão estética ou on-trend, está diretamente associado ao desenvolvimento da intelectualidade. Sócrates lutou em guerras e manteve a forma física até seus 70 anos; Platão, cujo nome verdadeiro era Arístocles (Platon era um apelido que, em grego, significava “costas largas”), era lutador olímpico e campeão de Pankration (tipo um Wrestling).
O médico atual é treinado para resolver problemas, mas frequentemente não é preparado para lidar com as questões existenciais, emocionais e éticas que acompanham a prática médica.
Conclusão
A Medicina moderna precisa recuperar a visão de que sua finalidade não é apenas curar doenças, mas compreender para cuidar do ser humano em sua totalidade. Para isso, é necessário um equilíbrio entre a técnica e o humanismo, entre a ciência e a sabedoria.
Resgatar a Paideia médica significa formar médicos que compreendam que a busca pela Verdade, pelo Bem e pelo Belo é tão essencial quanto o domínio da técnica. Apenas assim poderemos restaurar a grandeza da formação médica, moldando profissionais que sejam tanto cuidadores de corpos quanto de almas.
Referências
1. Escolas Médicas do Brasil. Comparativo Escolas Médicas no Brasil e no mundo [Internet]. Disponível em: https://www.escolasmedicas.com.br/escolas-medicas-brasil-e-internacionais.php
2. Joseph M. O Trivium: as artes liberais da lógica, da gramática e da retórica. São Paulo: É Realizações; 2018.
3. Martineau J. Quadrivium: os quatro temas das artes liberais: aritmética, geometria, música e astronomia. São Paulo: É Realizações; 2013.
4. Instituto Cultural Hugo de São Vítor. Hugo de S. Vitor – Opúsculo sobre o modo de aprender e de meditar [Internet]. Disponível em: https://www.hugodesaovitor.org.br/hugo-de-s-vitor-opusculo-sobre-o-modo-de-aprender-e-de-meditar/
5. Flexner A. Medical education in the United States and Canada: a report to the Carnegie Foundation for the Advancement of Teaching. New York: Carnegie Foundation; 1910.
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