Esta é a segunda parte de uma série sobre apendicite aguda, agora com foco no tratamento. Mas caso você queira ler sobre o diagnóstico e sobre o fim de alguns dogmas dessa etapa, basta ir direto para Apendicite Aguda Parte 1 - Fim de Dogmas no Diagnóstico?
Este texto é baseado nos Guidelines de Jerusalém - Diagnosis and treatment of acute appendicitis: 2020 update of the WSES Jerusalem guidelines.
1. Tratamento Inicial da Apendicite Aguda
Todo paciente com diagnóstico confirmado de apendicite aguda deve ser submetido a um tratamento inicial que visa o controle fisiológico. De acordo com a apresentação clínica, o cirurgião pode optar por uma ou outra medicação, cada qual com sua dose específica. Entrentanto, de maneira geral, admite-se que a grande maioria dos pacientes com apendicite aguda vão precisar de:
Reposição volêmica (conforme necessidade)
Antibioticoterapia (geralmente ceftriaxone 2 g + metronidazol 500 mg IV dose de ataque, considerando um paciente adulto)
Analgesia
Jejum
2. Tratamento Cirúrgico da Apendicite Aguda
Atualmente, o tratamento padrão-ouro da apendicite aguda é a apendicectomia videolaparoscópica. Assim, de maneira geral, todos os pacientes com condições clínicas devem ser submetidos à cirurgia.
Há três aspectos do tratamento que ainda são motivo de discussão nos congressos de cirurgia e tem sido abordados nos estudos. São eles:
O tratamento do coto apendicular
O uso de drenos intracavitários
O tratamento não-operatório
Coto apendicular:
Tradicionalmente, o coto apendicular tem sido invaginado com uma sutura em bolsa (bolsa de Orschner). Na verdade, talvez essa seja a "cirurgia do R1", na qual ele vai poder demonstrar suas habilidades técnicas de dissecção dos tecidos, de manipulação e de secção do apêndice, e de sutura. Pelo menos foi assim que a maioria da nossa geração (e das que vieram antes) aprendeu a operar apendicite.
Acontece que, com o advento da laparoscopia e dos instrumentais laparoscópicos, surgiram novas opções de tratamento do coto apendicular. Entre elas podemos citar a utilização de clipes de titânio, poliméricos (plástico) e grampeadores. Ainda, a boa e velha sutura ou ligadura simples do coto apendicular também tem sido empregada nas cirurgias videolaparoscópicas.
Com o surgimento de novas modalidades, a necessidade de invaginação do coto foi colocada em xeque. Meta-análises atuais demonstram que nenhum método é superior a outro em termos de complicações pós-operatórias, e o uso de clipes poliméricos e de ligaduras simples parece estar associado a menor tempo cirúrgico.
E para dar continuidade à destruição de dogmas que começamos na Parte 1 desta série: a invaginação do coto apendicular está contraindicada, inclusive nas apendicectomias abertas, porque não reduz complicações infecciosas, aumenta o tempo operatório, e pode estar associada a maior incidência de ileo. Pois é, menos uma oportunidade de pegar no pé do seu R1 (e os R1s agradecem!).
Drenagem da cavidade:
Mais um dogma, representando por célebres frases como "se você pensou em drenar, melhor drenar..." ou "eu nunca me arrependi de drenar, mas já me arrependi de não drenar..." Quem nunca ouviu uma dessas, não é mesmo?
Acontece que não há evidências de que a drenagem do leito apendicular em apendicites agudas complicadas com abscesso tenha algum benefício. Isso tem sido mostrado na literatura, inclusive com uma revisão sistemática com meta-análise da Cochrane. Ou seja, não é para drenar esses casos mais, hein?
Há que considere a drenagem em situações em que haja risco de fístula do coto apendicular, como em casos de inflamação da base do apêndice em contiguidade com o ceco. Entretanto, essa situação específica não foi estuda de forma ampla e individualizada.
Tratamento não operatório:
Putz, aqui tem pano para a manga, hein? Tema extenso que exigiria um post só para ele!
Nesta parte da série sobre apendicite aguda vamos simplesmente colocar que o tratamento clínico apenas com antibióticos é reservado a pacientes com apendicite não complicada, sem fecalito e sem condições clínicas para cirurgia (unfit, p. ex., comorbidade grave). Se aprofundar mais que isso, não vamos parar mais!
Confiram mais discussões sobre apendicite aguda no episódio 14 do nosso podcast "Mania de Cirurgia"
3. Classificação da Apendicite Aguda
E muito importante que todos os casos de apendicectomia sejam classificados com base no achado intraoperatório. Isso facilita e padroniza a passagem do caso e a determinação da conduta pós-operatória.
Uma das classificações recomendadas pelos Guidelines de Jerusalém é a de Gomes, publicada em 2006 na Revista do Colégio Brasileiro de Cirurgiões e modificada em 2015.
Classificação de Gomes modificada (2015):
Não complicada:
- Grau 0. Normal
- Grau 1. Edema e hiperemia, com ou sem fibrina
Complicada:
- Grau 2A. Necrose segmentar
- Grau 2B. Necrose da base
- Grau 3A. Flegmão (bloqueio inflamatório)
- Grau 3B. Abscesso < 5 cm, sem pneumoperitônio
- Grau 3C. Abscesso ≥ 5 cm, sem pneumoperitônio
- Grau 4. Peritonite difusa, com ou sem pneumoperitônio
4. Seguimento pós tratamento da Apendicite Aguda
Aqui a principal discussão é em relação ao uso de antiobióticos no pós-operatório para apendicite aguda. Parece uma coisa óbvia, não? Se teve apendicite, ganha antibiótico!
Sim... mas não! E talvez esse seja (infelizmente) mais um daqueles dogmas tradicionais aos quais a gente fica "aderido". Inúmeros trabalhos na literatura já mostram que pacientes com apendicite aguda não complicada (Grau 0 e 1 de Gomes) não devem receber antibiótico no pós-operatório, uma vez que essa estratégia não melhora o desfecho. Pelo contrário! Pode estar associada a maior morbidade (sintomas gastrointestinais, infecção por Clostridium difficile, etc) além de custos desnecessários. Assim, esses pacientes devem receber apenas a antibioticoprofilaxia do procedimento cirúrgico.
Outra discussão importante é em relação aos pacientes com apendicite aguda complicada: quanto tempo de antibiótico eles devem receber? Vários trabalhos compararam estratégias mais liberais (por exemplo, 7 a 10 dias) com mais restritivas (por exemplo 3-5 dias) e a evidência sugere que regimes de antibioticoterapia prolongados não melhoram o desfecho dos pacientes e os expõem aos riscos ineretens do uso de antibióticos.
Um dos trabalhos mais clássicos que envolve o tema é o STOP IT Trial, publicado no NEJM em 2015 que analisou o uso de antibióticos no controle da infecção intrabdominal e concluiu que, uma vez que o foco da infecção esteja controlado, o tempo ideal de antibiótico gira em torno de 4-5 dias, corroborando também os acahdos dos estudos específicos de apendicite aguda.
5. Casos especiais de Apendicite Aguda
Para finalizar esta breve revisão, vamos fazer um pot-pourri de situações especiais de apendicite aguda.
Suspeita clínica com apêndice normal na laparoscopia: lembrar de correr as alças de delgado à procura de um divertículo de Meckel! Em caso de VDL diagnóstica, sem outros achados que justifiquem a dor, o apêndice deve ser retirado mesmo que visualmente normal (76% de inflamação subserosa e 2% de tumor neuroendócrino);
Considerar o risco de neoplasia em pacientes idosos com história que pode corroborar esse diagnóstico. Muitas vezes você pode estar diante de um tumor de ceco que obstruiu o apêndice e resultou em uma apendicite aguda. Nesses casos, considerar uma clectomia direita e não apenas a apendicectomia.
Apendicite crônica com coleção bloqueada na fossa ilíaca direita ou na pelve , deve ser considerada para drenagem percutânea. A cirurgia é contraindicada inicialmente pelo risco de necessidade de colectomia direita.
Gestantes devem ser tratadas com cirurgia videolaparoscópica. O apêndice não muda de posição com o avançar da gestação em 80% das pacientes (dogma alert!).